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Projeto de Lei nº 912/XIV/2ª – Criminalização da Violência Obstétrica

No dia 14 de julho de 2021, pela mão da Deputada Não Inscrita Cristina Rodrigues, foi entregue na Assembleia da República o Projeto de Lei nº 912/XIV/2ª com o objetivo de reforçar a proteção das mulheres na gravidez e parto através da criminalização da violência obstétrica.

São vários os motivos inerentes a este Projeto de Lei. Em Portugal continuamos a assistir a atos de violência física e/ou psicológica contra as mulheres durante a gravidez, trabalho de parto, parto ou puerpério. Desses atos resultam não só danos físicos como também psicológicos que são de tal modo graves e impactantes que afetam negativamente vida das mulheres, nomeadamente, a sua autoestima, a sua vida sexual e reprodutiva, a sua relação com o bebé e com o parceiro/a, a sua saúde mental, deixando muitas vezes cicatrizes para o resto da vida.

Na 2ª edição do inquérito “Experiências de Parto em Portugal”, levado a cabo pela Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez foram ouvidas mulheres cujo parto aconteceu em Portugal, entre 2015 e 2019. Cerca de 30% das mulheres inquiridas afirmaram terem sido vítimas de desrespeito, abuso ou discriminação. E, em mais de 60% das situações, verificou-se o recurso à episiotomia.

Importa aqui uma chamada de atenção para este procedimento, a episiotomia. Esta é uma prática particularmente frequente em Portugal, estimando-se que ocorre em mais de 70% dos partos vaginais. Em relação a isto chama-se a atenção para o relatório da autoria da Organização Mundial de Saúde (OMS), datado de 2018, com o título “Intrapartum Care for a Positive Childbirth Experience” (“Cuidados durante o parto para uma experiência positiva de parto”), mais concretamente para a sua Recomendação 39, onde considerou-se que o uso rotineiro ou liberal da episiotomia não é recomendado para mulheres em situação de parto vaginal espontâneo. Em 2019, na septuagésima quarta sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, subordinada ao tema “Uma abordagem baseada nos direitos humanos sobre maus-tratos e violência contra as mulheres nos serviços de saúde reprodutiva, com foco no parto e na violência obstétrica”, foi apresentado o Relatório “sobre a violência contra as mulheres, suas causas e consequências, numa abordagem baseada nos direitos humanos para os maus tratos e a violência contra as mulheres nos serviços de saúde reprodutiva, com foco no parto e na violência obstétrica”, onde no seu ponto 25 é possível ler-se que esta prática, a episiotomia, quando desnecessária e/ou feita sem consentimento informado, pode ter efeitos físicos e psicológicos adversos na mãe, pode levar à morte, assim como pode resultar em violência baseada no género, tortura e em tratamento desumano e degradante. É ainda referido que a sua utilização excessiva e rotineira é problemática e contrária às recomendações da OMS. Vai mais longe, dizendo que quando não é medicamente justificada, esta prática deve ser considerada uma violação dos direitos das mulheres, sendo uma uma forma de violência de género contra as mulheres.

Ainda no âmbito do Relatório “Intrapartum Care for a Positive Childbirth Experience” acima referido, a OMS elaborou uma lista de 56 recomendações sobre cuidados durante o parto, com vista uma experiência de parto positiva. É palpável nesta lista a necessidade de ir além da prestação de cuidados de saúde clinicamente eficazes, é imperativo garantir que as mulheres se sintam seguras e confortáveis durante o parto, de modo a garantir-lhes uma experiência positiva.

Os dados dos inquéritos realizados pela Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e no Parto demonstram que, em Portugal, o cumprimento das recomendações da OMS fica aquém do desejável.

A violência obstétrica, segundo o Projeto de Lei nº 912/XIV/2ª, pode ser entendida como qualquer conduta direccionada à mulher durante o trabalho de parto, parto ou puerpério, que lhe cause dor, dano ou sofrimento desnecessário, praticada sem o seu consentimento ou em desrespeito pela sua autonomia ou preferências, constituindo assim uma clara limitação do poder de escolha e de decisão da mulher.”.

Ora, em Portugal, a violência obstétrica per si não é configurada penalmente como um tipo de crime. Aquilo que se verifica é que alguns atos considerados como violência obstétrica encontram enquadramento em outros tipos de crime, entre eles, ofensas à integridade física (artigos 143 e 144 do Código Penal Português), intervenções e tratamento médico-cirúrgicos arbitrárias (artigo 150 do Código Penal Português), mutilação genital feminina (artigo 144-A do Código Penal Português), recusa de médico (artigo 284 do Código Penal Português), devassa da vida privada (artigo 192 do Código Penal Português), violação de segredo (artigo 195 do Código Penal Português), injúria (artigo 181 Código Penal Português) , ameaça (artigo 153 Código Penal Português) e coacção (artigo 154 Código Penal Português). 

Sucede, contudo, que a não existência de uma previsão legal expressa para a violência obstétrica pode levar a que as mulheres vítimas dela não a denunciem por pensarem que as condutas de que foram vítimas não configuram crime. Aliás, verifica-se que na maior parte dos casos de violência obstétrica psicológica, a ausência de previsão legal tem resultado na impunidade dos seus agentes (neste sentido veja-se a investigação “A Violência Obstétrica: a violência institucionalizada contra o género” da autoria de Vânia Santos Simões, que em 2016 venceu o Prémio Teresa Rosmaninho – Direitos Humanos, Direitos das Mulheres).

As condutas suscetíveis de integrar violência obstétrica carecem de um juízo de censurabilidade, até porque tem particularidades que justificam a sua autonomização enquanto crime. 

Deste modo, o Projeto de Lei nº 912/XIV/2ª “pretende criminalizar a violência obstétrica, ou seja, os casos em que a mulher seja sujeita, durante o trabalho de parto, parto ou puerpério, a violência física ou psicológica, que lhe cause dor, dano ou sofrimento desnecessário ou limite o seu poder de escolha e de decisão.”

Nas palavras do citado Projeto Lei “a aprovação desta lei será́ um passo importante para contribuir para a erradicação de todas as formas de violência contra as mulheres, para o reforço dos direitos das mulheres na gravidez e parto e para a construção de uma sociedade mais igualitária.”.  

Os documentos, relatórios e artigos citados ou identificados neste artigo podem ser encontrados aqui:
https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=121036
https://associacaogravidezeparto.pt/campanhas-e-eventos/inquerito-experiencias-de-parto-em-portugal-2-a-edicao/
https://www.who.int/reproductivehealth/publications/intrapartum-care-guidelines/en/
https://digitallibrary.un.org/record/3823698#record-files-collapse-header
http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=109&tabela=leis
https://apmj.pt/premio-teresa-rosmaninho